Correndo o risco de falar para uma parede cibernáutica, o prazer de ver estampadas num ecrã as palavras que são fruto do meu campo fértil é maior do que qualquer comentário que possa receber, ou discussão que possa desencadear. Por isso mesmo mantenho esta resiliência senil de manter um espaço desactualizado, assíncrono do seu tempo, mas muito meu. Nem sempre tem surgido a necessidade de expiar os meus pensamentos, mas face ao que hoje, ontem e nos últimos dias se tem passado, tenho mesmo que recorrer a esta catarse. Completamente entregue à ciência dos sábios que nos conduzem pelos caminhos sinuosos de uma pandemia mundial, remeto toda a minha insignificância nas suas mãos, deixo os meus destinos entregues ao seu leme na esperança de chegar a um Porto Santo que tanta falta nos faz. Contudo desde os primeiros momentos, e mesmo descontando toda a incerteza que quem tem que decidir merece face ao desconhecido, sempre me deparei com situações incoerentes e sem sentido que acabam por cair num total descrédito digno dos maiores vilões de La Fontaine. Como será possível exigir civilidade aos pacóvios tugas no cumprimento das regras estabelecidas, tendo em conta que há 4 meses éramos um perigo para a sociedade internacional na propagação do vírus, um país na lista negra dos locais a habitar, e agora que se deu o ocaso da lua e do frio para dar lugar ao nascer do sol e das temperaturas tropicais sermos um destino de eleição, não só para apanhar o sol e ir a banhos, mas também para permitir que milhares de ingleses venham fazer orgias venerantes do deus Baco com o pretexto do futebol. O que se passa hoje na cidade do Porto só não é um atentado à dignidade de uma nação com séculos de existência, porque há muito tempo que passamos a ser um verdadeiro Bordel da Europa.
O grito da passada terça-feira ainda se faz sentir. Não pelos vizinhos que entretanto se cruzaram comigo e me perguntaram o que se passou por volta das 23h horas do passado dia 9 de Março, mas sim pelo dano provocado nas cordas vocais que ainda hoje sinto cada vez que falo. Desde que o VAR entrou na vida dos adeptos do futebol, os golos perderam aquela efusividade natural e intrínseca, e são poucos aqueles que, tal como o livre soberbamente executado de Sérgio Oliveira, nos permitem manifestar toda a nossa paixão no momento em que se atinge o zénite do futebol. Numa fracção de segundo, o nosso sistema nervoso na sua totalidade, a simpática e a parassimpática, se une como uma orquestra para acelerar ainda mais um ritmo cardíaco já no limite do saudável, ordena a todos os músculos do corpo para se levantar do sofá num salto que poderia almejar atingir os níveis olímpicos da modalidade, e obriga os pulmões a exalar todo o ar que existe no mais pequeno dos alvéolos para daí surgir o mais profundo e audível grito que descarrega 115 minutos de emoção. Isto é futebol, mas acima de tudo isto é a paixão por algo que nos escapa à compreensão do razoável. Aqueles que não sofrem deste mal poderão argumentar que não encontram razão plausível para compreender este sentimento, que eu concordo, mas no fundo tenho pena, porque não sabem o que perdem, pois durante uns breves mas saborosos momentos o mais comum e reles mortal consegue sentir o que é fazer parte dos aposentos do Olimpo.
Isto é para o vermelhos. Os verdes. As toupeiras. Os padres das missas. As peças encarnadas nos órgãos certos. Os que queriam ver as coisas de forma diferente. Eles não gostam de regras. E não têm qualquer respeito pelo Futebol Clube de Porto. Poderia passar ao lado, ficar aborrecido ou caluniar. Mas não poderia de forma alguma ignorar. Porque o Porto é uma Paixão. Algo que não se explica porque só se sente. Será algo certamente louco, mas loucamente único. Porque os portistas são suficientemente loucos para o ser todos os dias, e podemos não mudar o mundo, mas carago…
Deixei passar o período necessário, de modo a não escrever umas linhas demasiado temperadas, procurando marinar os pensamentos de forma mais lenta, ganhando assim o sabor perfeito do comentário final para ser servido a frio. Posto este preâmbulo, gostaria de comentar os acontecimentos desportivos da última semana, englobando os dois jogos que o meu clube efectuou em sede do campeonato nacional de futebol da primeira divisão, ou liga nós, ou como lhe quiserem chamar, pois por mim o melhor nome até seria algo que fizesse lembrar um molusco invertebrado que habita os interstícios do mar, mas pintado de vermelho. Duas grandes penalidades ficaram por marcar em dois jogos onde o Futebol Clube do Porto foi roubado em 4 pontos, permitindo a liderança actual partilhada com os leões de alvalade, e dando o alento vital que evitou a transformação da águia da luz num pintassilgo da floresta. Isto não é novo, como não é novo cortar as pernas quando o Porto começa a correr muito e os outros não o conseguem acompanhar. Mas se até agora se poderia dar o benefício da dúvida ao homem do apito, o desditoso VAR estaria encarregue hoje de aprimorar as decisões da equipa de arbitragem. Tal não aconteceu! Em ambos os casos Rui Costa e Jorge Sousa não mexeram a "peida" para recorrerem ao VAR. Os resultados foram indubitavelmente condicionados numa altura que nunca seria decisiva para o desfecho da liga, mas sem dúvida alguma crucial para o actual momento do campeonato. Ainda falta muito para o desfecho final, o caminho será difícil, e mais do que acreditar na conquista final, acredito no trabalho que Sérgio Conceição está a fazer e vai fazer. Força Porto.
Nasci para a paixão pelo futebol vendo jogadores de calibre ímpar como Zé Beto, João Pinto, André, Jaime Magalhães, Sousa, Madjer, Mlynarczyk, Futre ou Fernando Gomes. Como era muito pequenito, a memória torna-se difusa na hora de ser preciso, mas lembro-me do dia em que o meu Porto veio a Monção para um jogo contra o Desportivo. Foi algo de mágico, como se de repente o impossível deixasse de o ser, e os ídolos que pareciam inacessíveis encontravam-se bem junto de mim. Tão junto que um deles, não me recordo qual, me levou ao colo para dentro do autocarro para eu continuar a coleccionar os tão preciosos autógrafos que eu ia juntando num pequeno bloco de notas. O bloco perdeu-se no tempo, mas uma bola autografada pelos Campeões Europeus de 1987 ainda conservo em casa, um verdadeiro troféu para um Portista de alma e coração como eu. Às assinaturas, ligeiramente gastas pela vontade de dar uns pontapés na alcatifa do meu quarto de pequeno, tenho procurado dar nova vida sempre que tenho a possibilidade de o fazer, quando esses ídolos tem a amabilidade de se deslocar a um dos pontos mais a norte deste pequeno país, para honrar com a sua presença os aniversários da Casa do Futebol Clube do Porto de Monção. Num deles, não desfazendo todos os outros, o Bi-Bota de ouro Fernando Gomes foi um dos convidados. Quase 30 anos depois de ter assinado a minha bola, este humilde redactor destas linhas pediu que renovasse a sua assinatura. De caneta na mão e bola na outra, expliquei o que tinha e o que queria, e na hora de lhe entregar a minha caneta as minhas mãos tremiam como varas verdes pelo nervosismo e excitação do momento. Um ídolo nunca se esquece, e tive a sorte de ainda pertencer a uma geração carregada de pessoas que merecem esse nome. Os tempos mudam, e mudam-se as vontades. Hoje não posso oferecer aos meus filhos pequenas e singelas experiências como essas, porque a realidade é bem diferente. A camisola com o número 10 do próximo ano já não terá o mesmo nome, e o mesmo se passa com muitas outras... ídolos só mesmo noutros tempos...
O dia 21 de Maio de 2003 apresentava-se soalheiro, e de manhã bem cedo devidamente equipados, eu e o meu pai partimos rumo ao sul da península, desejosos para assistir em terras de castela ao triunfo dos guerreiros da Invicta. Chegados a Sevilha, ao sol que nos acompanhou durante toda a viagem juntou-se um calor tão intenso que faria corar de vergonha os números que se registam no mais alto verão nortenho. Tal como no tempo de Aljubarrota o nosso número era inferior, com a diferença que no lugar de espanhóis teríamos que medir forças com os escoceses do Celtic de Glasgow. Como foi a primeira final que assisti, das três que tive o prazer e sorte de acompanhar, tudo foi vivido de uma forma intensa, que o jogo se encarregou de levar para registos impróprios para cardíacos. O optimismo do meu pai contrastava com a minha natural tendência para desconfiar de algo demasiado bom que está ao nosso alcance, pois ainda antes do jogo comprou um lindo cachecol alusivo à final, cortesia de UEFA, compra que fez aumentar a minha ansiedade para a vitória, pois não queria que essa recordação ficasse manchada por um desfecho desfavorável. Ao minuto 115, o Ninja foi buscar forças ao milhares de portistas ali presentes, e a todos aqueles sofriam em casa, e rematou para o 3-2 final. Foi a loucura total. Sentado num corredor de acesso com um gradeamento à frente, foi a lucidez do meu pai no meio da euforia que me agarrou, pois eu já estava pronto para voar até ao campo e abraçar aqueles 11 desconhecidos que tantas alegrias deram a este portista de alma e coração. Gelsenkirchen foi histórico, Dublin foi bonito, mas sem dúvida alguma que Sevilha foi para mim a Final que qualquer adepto de futebol gostaria de viver pelo menos uma vez na vida. Nós estivemos lá...
Correndo o risco de desensolver uma síncope cardíaca, hoje não poderia deixar de falar do fim do campeonato nacional de futebol. O clube do bairro sagrou-se pior que campeão, bi-campeão. Algo que apesar de já ter idade para anteriormente ter presenciado, é díficil de encarar. Díficil porque o título foi entregue de bandeja pelo meu clube, o Futebol Clube do Porto. Difícil porque já em Novembro eu vaticinava este final, depois de 10 jornadas com conquistas verdadeiramente condimentadas por fenómenos extra-futebol. Contudo, o Porto teve várias oportunidades para desfazer essa "vantagem", mas não o fez. Não o fez porque apesar de se ter reforçado com elementos de qualidade, faltou aquilo que é mais importante no futebol - a paixão. Paixão por ser Portista e por se saber sentir o que é ser jogador do melhor clube do mundo, sentimento que faltou a alguns desses jogadores, mais preocupados em dar nas vistas na europa do futebol, aguardando que os grandes tubarões cirandassem os seus passes. O actual campeão conseguiu chegar ao título porque o Porto não foi Porto. Eu, ao contrário desses jogadores, continuo a sofrer com o meu clube, mas o sentimento de pertença e paixão não se apaga, ficando ainda maior na hora das derrotas. Viva o F.C. Porto, carago!